Redação nota mil no Enem 2016 abre debate sobre plágio e modelos
A estratégia de uma estudante do Rio de Janeiro que tirou nota mil na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2016 abriu, nesta semana, um debate sobre uma tática comum entre os candidatos: se preparar para a prova de redação usando como base textos que tiraram notas altas em edições anteriores do exame.
A aluna foi uma das 77 pessoas que conquistaram a nota máxima na aplicação do Enem 2016. Sua redação, com o tema “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil”, usou frases de duas outras provas, do Enem 2015, sobre “A persistência da violência contra a mulher na sociedade brasileira”, e do Enem 2014, que trouxe o tema “Publicidade infantil em questão no Brasil”. As duas redações anteriores, que tiraram, respectivamente, nota mil e 980 no Enem, estão disponíveis na internet e estão entre os vários textos bem sucedidos no exame que são usados como modelos por milhões de candidatos.
Procurado pelo G1, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) disse que estuda a questão e ainda não tem ação definida. Em viagem à Suíça, Maria Inês Fini, presidente do Inep, disse considerar o episódio “lamentável”, e afirma que pretende adotar medidas para “dificultar” casos como esse. “Consideramos lamentável o episódio e um desrespeito aos jovens e adultos ainda em formação. O Inep adotará as necessárias providências para dificultar esse tipo de atitude que impacta negativamente no desenvolvimento ético de nossa juventude e população adulta e nos critérios de justiça e transparência dos processos de acesso ao ensino superior no Brasil”, disse ela.
Nem o edital do Enem 2016 nem o Guia do Participante proíbem o plágio de forma explícita na redação. Colunista de educação do G1, Andrea Ramal explica, porém, que há indícios de que a prática pode ser mal vista. “Entendo que o Guia do Candidato dá a dica de não plagiar quando, na competência 3, fala que a nota máxima será dada para quem ‘apresenta informações, fatos e opiniões relacionados ao tema, de forma organizada, com indícios de autoria, em defesa de um ponto de vista'”, explicou ela. “No entanto, o fato que ocorreu agora é um alerta para que o Inep e o MEC coloquem a questão de forma mais clara, exigindo criatividade, que o candidato faça ‘a própria leitura e análise das questões abordadas’, sem referência literal, a não ser quando se trata de conceitos de autores consagrados.”
A estudante não quis conversar com a reportagem. No entanto, os dois autores dos textos que tiveram trechos copiados pela estudante afirmaram ao G1 que a prática de usar outras redações como modelo é comum entre os candidatos. Um deles, que é professor de português e redação, defendeu a candidata e afirmou que não vê plágio na conduta dela. Além disso, ele recomendou que os estudantes continuem se inspirando em redações que tiraram nota alta no Enem na hora de treinar para o exame.
‘Plágio’ x ‘inspiração’
“Eu não vou endossar a palavra plágio, eu vou usar a palavra inspiração”, afirmou ao G1 o professor Rafael Cunha, diretor pedagógico do Descomplica, uma plataforma online de educação que reúne videoaulas e oferece serviço pedagógicos como a correção de redações. “É muito difícil você definir qual é o limite da inspiração para um jovem de 17 anos fazendo um vestibular que vale a vida dele. A inspiração dela foi um pouco além, ela sabia palavras. Até que ponto isso não é normal, isso não é natural? Até que ponto você não vai usar as influências do seu pai e da sua mãe, que ficaram falando dez mil coisas ao longo da sua vida e formaram o seu pensamento? Você não está plagiando os seus pais.”
Saiu originalmente da redação dele, escrita em 2014 para a redação do Enem sobre publicidade infantil, trechos usados na introdução e na conclusão da redação da prova da estudante sobre intolerância religiosa. Os dois trechos estão relacionados ao protagonista do romance “Memórias póstumas de Brás Cubas”, de Machado de Assis.
Cunha citou uma célebre característica de Brás Cubas – não ter filhos para não transmitir “o legado de nossa miséria” – tanto no início quanto no fim de sua redação. No início, para relacionar a ideia à questão levantada pelo tema da prova. No fim, para concluir sua redação afirmando que, se sua proposta de intervenção for aplicada, a questão seria resolvida e, então, deixaria “legado de que Brás Cubas pudesse se orgulhar”. Ele afirma que a demonstração de “repertório sociocultural produtivo”, como a citação de pensadores, letras de música ou outro tipo de referência é esperada pela banca corretora do Enem.
No texto da estudante fluminense, a primeira frase do texto do professor aparece na íntegra, e a segunda e a última frase traz trechos semelhantes. “Eu não tirei mil, eu tirei 980. Ela tirou mil. Então ela fez alguma coisa melhor do que eu fiz, e falo isso com muita tranquilidade”, afirmou o professor.
“Eu gostaria de defender o que essa aluna fez. Ela foi muito inteligente em conseguir, mesmo com um tema totalmente diferente, usar as mesmas referências culturais que eu tinha usado. O limite disso talvez seria usar as mesmas palavras, mas eu não acho que vale a pena discutir isso. Porque talvez ela nem soubesse que tinha decorado. Talvez ela tenha lido tantas vezes e gostado tanto, que tenha sentido naquilo ali uma inspiração mesmo.”
Cunha explica que a estratégia de usar como inspiração os modelos bem sucedidos em edições anteriores do Enem serve para dar segurança aos candidatos. Segundo ele, os professores estimulam que os estudantes leiam “textos nota mil” e se inspirem neles na hora da prova. “Existe um certo grau de segurança em navegar mares que já foram navegados e foram bem avaliados”, diz ele.
Aprender x copiar
O estudante Raphael de Souza é o outro autor que inspirou a redação da estudante do Rio no Enem 2016. O texto dele, feito para o Enem 2015, tirou nota mil e o ajudou a ingressar no curso de medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente, ele está no segundo ano da graduação.
Sua redação teve quatro parágrafos. No segundo, ele faz referência a uma das ideias de Aristóteles, citando o pensador da Grécia Antiga e explicando que, segundo ele, “a política deve ser utilizada de modo que, por meio da justiça, o equilíbrio seja alcançado na sociedade”. No terceiro, cita o sociólogo francês Émile Durkheim, segundo quem “o fato social é uma maneira coletiva de agir e de pensar, dotada de exterioridade, generalidade e coercitividade”. Ambas as frases apareceram no segundo e terceiro parágrafos da prova da estudante, que também teve quatro parágrafos.
Ele disse ao G1 que não decorou frases prontas para a prova, mas estudou filosofia e sociologia com o foco na redação. “Tentei [o Enem] para medicina três vezes, e ao longo desses três anos fui aproveitando as aulas de filosofia e sociologia para ver o que achava interessante para a redação. Foi uma coisa que fui montando nesses três anos, no final eu tinha um resumo com ideias interessantes para a redação, tinha vários nomes”, explicou ele. “Além de decorar, você precisa ter um conceito e saber aplicar em um tema direitinho. Tem que saber aplicar.”
Raphael lembra que, antes de usar esses argumentos na prova do MEC, ele os “testou” antes nos simulados. “Já tinha usado antes, para tentar ver até na correção, passando pelo cursinho, se é legal colocar ou não. Essas coisas é sempre bom treinar antes.”
O atual estudante de medicina diz que, na sua época de vestibulando, também usou textos “nota mil no Enem” como modelo. “É uma prática até comum nas escolas e cursinhos ter aula com redação nota mil para pegar frases, conectivos… Eu tive muita aula com redação nota mil. Pode ser que ela tenha achado a minha redação por acaso, e tenha pegado o máximo possível da minha redação”, avalia ele.
Correção burocrática
O professor Rafael Cunha recomenda que os candidatos treinem redações com foco nas competências, prestando atenção nos detalhes esperados na correção. “Praticar muito, fazer muitas redações, mas todas adequadas ao estilo do Enem, porque errando você aprende, e ver quais são as competências em que você mais falha, e aumentar a nota nessas competência”.
Ele diz que é preciso “jogar o jogo com o regulamento debaixo do braço sabendo o que pode e o que não pode, o que é valorizado pela banca”.
Andrea Ramal ressalta que, na última edição do Enem, quando caiu mais uma vez o número de pessoas com a nota mil, as redações “foram uma decepção”, e que, mesmo os que trouxeram “repertório sociocultural” acabaram não enriquecendo de fato o texto como um todo. “Os trechos de Aristótoles e de Durkheim citados em algumas redações nota mil não tem relação direta com o que é mencionado na frase seguinte. Parece uma citação caída de para-quedas”, afirmou ela.