Aumenta proporção de crianças com até 13 anos vítimas de estupros no Brasil
“Eu tinha um ódio tão grande”, lembra Nair, 41, ao relatar os abusos sexuais de seu tio, que começaram quando ela tinha 12 anos. “Virei a filha rebelde e comecei a me prostituir.”
Carolina, 31, era um ano mais nova do que Nair quando seu padrasto começou os abusos, que só pararam quando ela tinha 15 e fugiu de casa. Com um filho de 3 anos, ela voltou a dividir o teto com o abusador, que continua casado com sua mãe. “É complicado.”
Nair e Carolina (que pediram para ter sua identidade protegida) se somam às dezenas de milhares de vítimas de estupro no Brasil -as mulheres são 86,9% de todos os casos registrados no país. Assim como as duas, 85,2% delas conheciam o autor do abuso e 60% foram agredidas dentro de casa, com menos de 19 anos.
Entre as crianças de até quatro anos, vai a 70% o total dos crimes cometidos na própria residência.
Os dados são do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021, feito com base nos boletins de ocorrência registrados em 2020.
De acordo com o Código Penal brasileiro, o crime de estupro é definido como “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Se a vítima for menor de 14 anos ou se, “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato”, fica tipificado o estupro de vulnerável. E esses são 73,7% dos casos, segundo os números mais recentes.
Os levantamentos mostram que o crime vem ocorrendo com vítimas cada vez mais jovens: o percentual de crianças de até 13 anos entre os registros passou de 57,9% em 2019 para 60,6% em 2020. Isso apesar de uma queda no total de denúncias durante a pandemia -foram 60.460 casos no ano passado, contra 69.886 no período anterior.
Para os especialistas, no entanto, a diminuição tende a estar relacionada mais à dificuldade de procurar uma delegacia devido ao isolamento social do que à redução no número de crimes.
“Para além dos efeitos mais visíveis e imediatos desta violência”, escreve o anuário, “vítimas da violência sexual com frequência sofrem transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), depressão, ansiedade, transtornos alimentares, distúrbios sexuais e do humor, maior uso ou abuso de álcool e drogas, comprometimento da satisfação com a vida, com o corpo, com a atividade sexual e com relacionamentos interpessoais.”
Na Paraíba, por exemplo, uma adolescente de 15 anos tentou matar o filho de 4 anos, fruto do abuso sexual cometido pelo padrasto. “É uma pessoa com conflitos enormes no seu psiquê”, contou a promotora da Infância Ivete Arruda à mídia local. “Ela enxergava o agressor quando via o menino. Quando olhou para ele, veio à mente tudo o que ela tinha vivido em relação ao padrasto, as agressões, os estupros, o que ela ouvia da mãe.”
Segundo Arruda, a situação foi um pedido de socorro. “É uma bandeira de SOS que ela levanta, por tudo que passou. Ela ama o filho. Ela externou isso diversas vezes, mas o sentimento era de tirar tudo da vida dela para que a dor sumisse.”
O caso reitera a avaliação de que os efeitos dos abusos de crianças deixam “marcas por toda a vida”, como afirma o anuário. “Trata-se de uma geração de crianças e adolescentes marcada de forma definitiva e que tem as suas oportunidades, que nesse período deveriam ser maximizadas, profundamente prejudicadas.”
No caso de Nair, o abuso significou, além da dificuldade de se relacionar com outras pessoas, dez anos na prostituição. Carolina, por sua vez, relata ter ficado desestabilizada por muito tempo, tanto financeira quanto emocionalmente. Hoje, com um filho de 3 anos com deficiência intelectual, ela está desempregada e vive do auxílio pago ao menino pelo governo.
Líder na incidência do estupro de vulnerável no Brasil, Mato Grosso do Sul, onde vivem Carolina e Nair, destoou da tendência nacional de queda vista em 2020, com uma taxa de 57,5 casos por 100 mil habitantes (alta de 4,5% mesmo em ano de pandemia).
Umas das vítimas desse tipo de crime no estado neste ano foi Raíssa da Silva Cabreira, 11, moradora da aldeia Bororó, em Dourados, a 230 km da capital Campo Grande. Ela sofreu um estupro coletivo e foi morta ao ser jogada de uma pedreira. Um dos autores foi seu tio, Elinho Arévalo, que abusava sexualmente de Raíssa desde que ela tinha 5 anos -ele foi morto na cadeia.
O caso na aldeia Bororó expõe a dificuldade de lidar com os abusos de indígenas em Mato Grosso do Sul, que tem grande quantidade de assentamentos e aldeias.
“A gente tem a segunda maior população indígena do Brasil em Mato Grosso do Sul, e os índices de violência e vulnerabilidade de meninas e mulheres indígenas são muito altos”, explica a subsecretária Estadual de Políticas Públicas para Mulheres, Luciana Azambuja. “É muito delicado ter uma política pública que atenda a todos os grupos, precisa ter especificidades. A gente precisa falar em guarani, em espanhol na fronteira.”
Para tentar enfrentar o problema, o estado trabalha com uma estrutura de acolhimento das vítimas em diferentes órgãos públicos. Entre as iniciativas, está a chamada sala lilás, implantada no Instituto Médico Legal desde 2017.
O modelo foi importado do Rio Grande do Sul e visa dar um atendimento mais humanizado às vítimas de violência sexual, com espaço exclusivo para crianças. Além do IML, a sala tem sido replicada em delegacias de cidades de pequeno e médio porte. Em Sidrolândia, a 70 km da capital, houve aumento de 40% na procura pela delegacia com o atendimento especializado.
“Quando tem órgão específico, encoraja as mulheres, e o número de denúncias cresce”, explica a subsecretária. Até agora, foram sete salas instaladas pelo estado e outras 20 estão para serem inauguradas. Além disso, há 12 Delegacias de Atendimento Especializado à Mulher (Deam), que atendem quase metade dos municípios.
Dentro dessas delegacias, explica a delegada Joilce Ramos, que atua em Campo Grande, a preocupação é não revitimizar os menores de idade, que são atendidos nos horários em que a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente não está aberta. Por isso, é ouvido apenas o acompanhante para um relatório preliminar, e a criança ou o adolescente dá seu depoimento a um psicólogo em outro momento.
Um profissional da área também faz a avaliação de mulheres vítimas de estupro. “Geralmente, não tem testemunha, e a palavra da vítima tem preponderância”, explica Joilce sobre o trabalho do psicólogo para descobrir se o crime aconteceu.
Integram essa rede de acolhimento iniciativas como a Casa da Mulher Brasileira em Campo Grande, a primeira a ser instalada no país, e o Núcleo da Infância e Juventude dentro do MP-MS (Ministério Público de Mato Grosso do Sul), que trabalha para auxiliar o trabalho dos promotores ao lidar com casos como o do abuso sexual de menores. Ainda assim, a promotora Fabrícia Lima, que coordena o núcleo, destaca que um dos desafios é a integração dessa rede.
Além de impactar as denúncias, as restrições impostas pela pandemia tiveram reflexos nos trabalhos de prevenção. Algumas ações foram mantidas de forma virtual, como o site Não se Cale, que reúne campanhas de informação e links para denúncias. “Seria ótimo se todas tivessem internet, mas não é a realidade da maior parte das mulheres mais vulneráveis”, diz a subsecretária.
O retorno das crianças às aulas presenciais também veio acompanhado pelo aumento no número de relatos -as escolas têm papel decisivo na identificação de casos de violência. “Nesse momento em que as crianças possivelmente estiveram mais expostas a situações mais delicadas e que mais precisavam de ajuda, algumas das possíveis portas de entrada das denúncias, como as escolas, estavam fechadas”, diz o anuário.
Na escola Manoel Bonifácio Nunes da Cunha, de ensino integral em Campo Grande, a diretora Lusimeire Gonçalves já registrou duas situações de violência em casa desde o retorno das crianças às aulas. “O grande desafio é quando descobre quem é, e muitas vezes é alguém tão próximo”, diz.
Essa proximidade dos abusadores foi destacada no Anuário de Segurança Pública. “Quando tratamos de violência contra crianças e adolescentes, os dados são preocupantes, pois indicam que são familiares e outras pessoas do círculo íntimo destas os principais autores de abusos e violações de caráter sexual.”
Soma-se a isso a falta de acolhimento de quem deveria proteger, como no caso de Carolina. “O maior desconforto é em relação aos cuidadores, quem não acreditou [no abuso]”, explica a psicóloga Roseneia Martines, que atua no Projeto Nova, de atendimento a vítimas de violência sexual, onde Carolina e Nair receberam acompanhamento. “Normalmente é a figura materna que não foi o suporte necessário. É a parte mais difícil, mais do que falar do próprio abuso, é a dor do abandono.”
“Eu convivo com a pessoa, a minha mãe não se separou dele e está casada até hoje”, conta Carolina. “Então não foi difícil, ainda é.”
DENUNCIE Vítimas ou testemunhas podem denunciar eventos de violência contra a mulher pelo Ligue 180 (basta teclar 180 de qualquer telefone fixo ou celular). O serviço está disponível também por WhastApp, pelo número (61) 99656-5008, e pelo Telegram, no canal Direitoshumanosbrasilbot, 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.
A ligação é gratuita.
FONTE: Notícias ao Minuto Brasil / Folhapress.