Pau da bandeira divide opiniões em Barbalha

Barbalha. No próximo sábado (28), terá início um dos mais tradicionais festejos religiosos do Nordeste: a festa de Santo Antônio, padroeiro deste Município, no Cariri cearense. O evento, que estima reunir mais de 600 mil pessoas, durante os 13 dias de programação, foi aberto oficialmente nessa sexta-feira (19), com o corte do pau da Bandeira. Para além do simbolismo que envolve a data, que representa, para os devotos, um dos momentos mais importantes da festa do Santo casamenteiro, surgiu nos últimos anos uma preocupação de ambientalistas quanto à necessidade de se cortar uma grande árvore a cada ano.

Dicotomia

Essa dicotomia entre a tradição secular e a preservação ambiental tem gerado debates e mexido com o imaginário popular. De um lado estão os devotos do padroeiro de Barbalha. Eles compreendem que o misticismo que representa o festejo, desde a escolha e corte do pau, ao cortejo, na data de encerramento, deve ser mantido. De outro, ambientalistas e pesquisadores, que analisam a prática do corte como danosa ao meio ambiente. O debate teve início há uma década quando, em maio de 2007, o doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Gilmar de Carvalho, afirmou ao Diário do Nordeste que o pau da bandeira poderia ser simbolizado de outra forma que não necessariamente o tronco de uma árvore.

Para Rildo Teles, vereador e capitão do pau há 15 anos, “tem que se considerar e entender os significados que envolvem essa tradição”. Ele se mostra contrário à visão de que o corte do pau impacta direta e negativamente no meio ambiente. “Respeito a opinião de todos, mas não concordo com o que tem sido exposto. Primeiro, devemos lembrar que a festa de Santo Antônio é tradicional e uma das maiores do Nordeste, além de ser reconhecida pelo Iphan como Patrimônio Cultural do Brasil, o que mostra a seriedade e compromisso de todas as pessoas que nela estão envolvidas. O corte do pau é um dos momentos mais importantes do festejo. Ele não ocorre de forma isolada. Há todo um processo, que vai desde a sua escolha, a bênção na Igreja e depois o corte. É tradição e qualquer alteração representa uma ruptura nesse costume que surgiu no século passado”, avalia.

Para Gilmar, no entanto, o que importa na tradição do pau da Bandeira, é o significado de verticalidade, que simboliza a ligação entre o céu e a terra, e não propriamente o tronco da árvore em si. “Reclamei, faz tempo, do corte de árvores centenárias. Creio que não seria necessário. O povo é criativo o bastante para encontrar outras formas de ligar os céus à terra. A Chapada do Araripe é um território sagrado. A primeira floresta declarada como tal, há mais de 60 anos. Tem sido relativamente bem cuidada e não merece ser agredida, anualmente, logo com o pretexto de saudar o Santo Antônio”.

O chefe da Área de Proteção Ambiental (APA) Chapada do Araripe, Paulo Maier, destaca, porém, que, do ponto de vista da conservação da biodiversidade, “na maioria dos casos a resiliência da área permite sua recuperação sem necessidade de nenhuma intervenção humana porque o processo de morte de árvores adultas velhas é corriqueiro nestes ambientes e oportuniza que outros indivíduos se desenvolvam mais facilmente graças ao maior acesso à luz solar e redução da competição por água e nutrientes do solo”.

Ele destaca, ainda, que o corte de uma única árvore, mesmo que de forma continuada ao longo dos anos, “é muitíssimo inferior ao impacto de uma única queimada ou desmatamento em uma tarefa de terra e, via de regra, não possui significativo impacto, senão muito localizado”.

Rildo também defende a visão de Maier e acrescenta que, para cada árvore cortada anualmente, 100 mudas são plantadas. “Há um todo um trabalho de reflorestamento. E, além disso, há anos estamos com uma técnica de corte que não atinge outras plantas, ou seja, só mesmo aquela árvore escolhida vem ao solo, sem atingir outras ao redor. Todo o processo é comunicado e acompanhado pelos órgãos competentes, como Ibama e ICMbio”, acrescenta o capitão do pau. Para a escolha do mastro, ele explica que a opção sempre ocorre pela árvore maior. “Esse pau vai ser carregado por mais de 250 homens, em um trajeto de 8Km, que demonstra a fé deles e não deixa de ser um autoflagelo, pois essas árvores pesam mais de duas toneladas. Então, optamos sempre pela maior, para que contemple maior número de carregadores”, explica.

Irredutível

Questionado se um tronco utilizado em um ano não poderia servir para edições subsequentes, Rildo limitou-se dizer que “se assim ocorresse, estaríamos fugindo da tradição”. Quanto à declaração de Gilmar de Carvalho, que disse simbolicamente que o “pau poderia ser uma projeção holográfica ou feixes de lazer”, Rildo se mostrou incomodado e convidou o professor a conhecer a festa de perto. “Faço um desafio aos ambientalistas e pessoas que são contra a nossa tradição de vir conhecer de perto a festa do padroeiro, que venham à nossa cidade vivenciar a fé dessas pessoas e, mais, convido-os para uma conversa. Estamos abertos a diálogos. Recentemente, a festa passou por adequações sugeridas pelo Ministério Público no tocante à segurança, ou seja, aceitamos, claro, todas as sugestões, desde que não firam a história do festejo”.

Como “prejuízo”, Paulo Maier destaca que a maior ameaça é para a própria festa, pois a retirada continuada de árvores de grande porte das proximidades da cidade poderá levar à inexistência deste recurso para festejos futuros. No entanto, alerta que a missão da Instituição é avaliar possíveis impactos do corte e carregamento da árvore/tronco no interior da APA.

“Na APA Chapada do Araripe ocorrem 18 espécies presentes na lista brasileira de espécies ameaçadas, sendo 15 de fauna e três de flora. Obviamente não é autorizado o corte de espécies ameaçadas, salvo em condições muito especiais. Além disto, são listadas 173 espécies vegetais com uso comercial de produtos não madeireiros na chapada do Araripe, das quais 25 possuem população em declínio e requerem cuidados especiais, como replantio compensatório no caso de supressão”, explica, ao acrescentar que a APA também avalia o atendimento das necessidades para o festejo a fim de evitar inviabilizar a manutenção do processo cultural.

Opinião do Especialista

A morte do Pau da Bandeira

Há Tradições e “tradições”. Matar, explorar, vilipendiar mulheres e crianças já pertenceram – e ainda pertencem, lastimosamente – a “tradições”, tudo devidamente “justificado”. É Cultura. Nossas festas populares autênticas, originais, apresentam grande valor sociocultural, religioso, histórico, mas há incongruências. Um exemplo: As festas do Pau da Bandeira. São várias as cidades que mantém a tradição do corte e transporte de uma grande árvore, maior do que 20m, TODOS OS ANOS, numa terra beirando o árido, onde as matas originais há muito não vicejam, sucumbiram ao machado e ao fogo por cerca de 400 anos. Hoje, as poucas restantes ainda são exploradas, degradadas, incendiadas.

As poucas grandes árvores que restam, raras, únicas, devem ser protegidas de modo dedicado, com afinco. Desconhecemos o tamanho do prejuízo ecológico, também traduzido em pobreza, êxodo, crimes. A degradação ambiental não é única e sim múltipla. Mal conhecemos a natureza que nos resta, poucos são os estudos e os estudiosos. No Ceará, havia antas, emas e araras em abundância, hoje extintas do território. Milhões de troncos foram usados nas construções rurais, igrejas, pontes, postes e dormentes das estradas de ferro.

Todos os anos – desde pelo menos 1928 -, em Barbalha, ocorre o inaceitável corte das árvores, nas festas do Pau da Bandeira. São várias as festas e vários os paus derrubados. Por que não ser o mesmo pau todos os anos? O que é feito da madeira dos grandes paus? O que conta é o valor simbólico. Um grande pau a ser carregado por muitos homens e fincado defronte à matriz. Todos querem tocar o pau, principalmente moças em busca de matrimônio. A árvore cortada em 2016 em Barbalha, onde é maior essa festa, é uma rama-branca, conforme noticiado, sem que seja dado seu nome científico. Ou seja, é desconhecida a sua identidade, portanto nada sabemos de seu status de conservação, suas utilidades, sua raridade. Morre sem ter uma identificação. É apenas um pau grande e antigo. Quem se importa?

O Semiárido tem sido duramente afetado pela desertificação, processo que se inicia com a perda da biodiversidade, e muito haveria de ser feito pelos governos para promover a recuperação de áreas. Aí vem a “cultura” e a ignorância, muitas vezes intrínsecas com a derrubada de grandes árvores, todos os anos. São muitas, repito, as festas do Pau da Bandeira na região do Cariri, também em Pernambuco. Centenas, uma vez que são centenas os povoados e distritos que mantém a tradição. Não sabemos quantas são as festas do Pau da Bandeira nesse sertão de meu Deus. Sabemos e alertamos veementemente que são muitas. Assim, muitas são as grandes árvores mortas nesta triste “tradição”.

A morte de uma árvore antiga leva junto muitas outras vidas. Além das que nela viviam, as plantas do entorno são quebradas pela queda do grande tronco e a clareira aberta leva a mudanças microclimáticas e bióticas que afetam a sobrevivência de outras espécies. Há um conflito cultura-natureza quando a cultura implica na destruição da natureza.

Uma árvore com 25m no Ceará é uma guerreira, uma senhora, uma sumidade. Merece todo o respeito e proteção. É o testemunho de épocas. Tão nobre que tomba sem alarde para agradar humanos numa festa cultural para Santo Antônio. E, pasmem, tudo é acompanhado por autoridades diversas, polícia, Ibama, ICMBio enfim, tudo devidamente autorizado – onde for – e abençoado pela Igreja. O homem e sua permanente insensatez.

Fala-se em replantios. Ora, primeiro nem se sabe a identidade da árvore ou mais informações sobre sua propagação, quais são as espécies plantadas? Mudinhas levam de 20 a 40 anos para ficarem adultas. Quem vai cuidar delas? Quem vai garantir isso? São várias as festas do Pau da Bandeira e muitos os paus derrubados. O plantio de mudas, se ocorrer, não irá recuperar de modo algum o dano. É irreparável. Uma árvore antiga tem um histórico e está associada à vida de dezenas de outras vidas, dos pássaros aos soins, dos besouros aos beija-flores, orquídeas, bromélias e tantas outras espécies cuja dinâmica sequer conhecemos. As fontes do Cariri só existem devido à Floresta da Chapada do Araripe, e todos sabem: árvore = água.

Gilmar de Carvalho sabiamente diz: “O povo é criativo o bastante para encontrar outras formas de ligar os céus à terra. A Chapada do Araripe é um território sagrado. Não merece ser agredida anualmente, logo com o pretexto de saudar Santo Antônio”.

Preserve-se o ritual com o MESMO PAU. Estamos à beira do deserto. Parem a matança, e VIVA às festas populares, VIVA os paus vivos, toda a vida associada e todos os benefícios que trazem ao planeta. VIVA o Cariri. E VIVA a Santo Antônio.

INFORMAÇÃO: Diário do Nordeste.

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